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domingo, 4 de setembro de 2011

‘Juiz da infância não pode cuidar também de execução penal’

Jurista destaca importância da especialização e trata de temas polêmicos relacionados à adoção, como devolução de crianças; sobre as meninas da Vila Mariana, sentencia: ‘não há o que fazer’

A estrutura do Judiciário para as varas da Infância e Juventude precisa ser modificada para que o Brasil reduza os gargalos da adoção. “Não é possível que um juiz da Infância cuide também de júri, de execução penal. Temos de ter juízes, promotores e defensores públicos para tratar especificamente disso”, sentencia o desembargador Antônio Carlos Malheiros. Na entrevista a seguir, ele discorre sobre a dificuldade que os grupos de irmãos têm de conseguir uma família, afirma que a sociedade deve aceitar sem preconceito a adoção por casais homoafetivos e reconhece a existência das “crianças com passado”, aquelas que foram vítimas de abuso sexual, são filhas de usuários de crack ou cometeram infrações – como é o caso do grupo de meninas menores de 12 anos que assaltavam comerciantes e pedestres na região da Vila Mariana.
●Um dos gargalos do sistema é a falta de interessados em adotar grupos de irmãos. Não seria bom se a Justiça fosse mais flexível, para que mais crianças tivessem chance de ser adotadas? Esse é um drama, porque a pessoa quer adotar o menino de 2 anos, mas não o irmão de 12. Mas será que eu vou ter de cortar o único vínculo que essa criança tem com a sua família natural?
● Segundo psicólogos e assistentes sociais, no entanto, muitas crianças vêm de famílias desestruturadas e chegam sem nenhum vínculo familiar. Isso acontece mesmo. Por isso, acho que essas situações devem ser resolvidas caso a caso. É preciso pensar e repensar. E até, quem sabe, permitir a adoção de um, desde que ele mantenha contato com o irmão que continua abrigado. O vínculo natural é importante, por mais que a criança não se importe com isso.
● Sem interessados, muitos chegam aos 18 anos no abrigo e vão para a rua sem referência nenhuma. Como lidar com isso? Pormais que os abrigos estejam profissionalizando a molecada, alguns saem de lá e vão parar em albergues. Mas isso só vai acabar quando a cabeça das pessoas mudar. Se todos fizermos menos exigências, muita gente vai conseguir ser adotada antes dos 18. É o que fazem os estrangeiros que adotam nossas crianças. Dia desses, um casal de noruegueses, alvos mais que a neve, adotou três meninos negros: um de 6 anos, outro de 8 e o terceiro de 10. Recentemente também, uma italiana adotou uma menina com aids e me afirmou que a doença não fazia a menor diferença em seu amor e sua disposição de criar. Mas isso são os estrangeiros. Por aqui, idade e raça ainda são determinantes.
● E, apesar das exigências, há quem queira devolver a criança durante o período de guarda… Isso ainda acontece e é muito prejudicial à criança. É até aceitável caso o casal descubra, por exemplo, que a criança tem uma doença grave e o plano de saúde não cobre. Ou o adotante descobre que ele próprio tem uma doença terminal. Agora, devolver porque o menino é muito sapeca e quebrou a coleção de vaso, não é aceitável. E isso ainda no período de guarda. Porque é bom lembrar que, depois de finalizado o processo de adoção, não se pode mais devolver em hipótese nenhuma.É filho e pronto.
● São adoções feitas a partir de motivações erradas? Sim. Há uma série de motivações equivocadas. Tem gente que pensa: “Não sou mais uma mulher sem filhos. Vou esconder de todos que foi adotado.” Ou: “Vou adotar para ter companhia quando ficar mais velha.” Há também aqueles que dizem: “Agora que adotamos a Mariazinha não vamos mais nos separar. Vamos segurar a porcaria do nosso casamento.” Gente assim nunca vai adotar os filhos de craqueiros ou as crianças que sofreram abuso sexual. Têm medo de que a criança cresça e também se torne um abusador.
● E o que fazer com essas crianças com passado, como as meninas que faziam arrastões na Vila Mariana que foram encaminhadas para um abrigo? Para essas meninas não há mais nada o que fazer. Parece fácil dizer: manda para um abrigo. Mas daí vêm as implicações. Primeiro: que abrigo vai querer essas meninas, que são bravíssimas? Segundo: como segurá-las dentro do abrigo? Elas vão fugir nos primeiros 5minutos. Mas suponha que fiquem. O próximo passo é localizar a família. Que família é essa? Tem condições de criar? Se não tem, suspendemos o poder familiar e temos dois anos para devolvê-las ou colocá- las para adoção. Passa o tempo, não conseguimos devolver e elas seguem para adoção. Quem adota? E já falo isso superando aspectos raciais e de idade. Mesmo aquele cara bacana, com a cabeça aberta e o coração grande, ele vai querer a garota quando souber que ela é uma daquelas da Vila Mariana? Por isso, tudo o que fizermos por elas agora é paliativo. Estamos colocando um bandaid em um tumor maligno. A situação só mudará se trabalharmos na raiz. Enquanto não se fizer isso, a cena se repetirá.
● E levá-las para um abrigo afirma ainda mais a confusão que já é feita entre morador de abrigo e interno da Fundação Casa, não é mesmo? Sim. Nós, Estado e sociedade, fazemos essa confusão. E talvez nem seja racional, seja emocional. Quem está em abrigo é um candidato à Fundação Casa. Ele possui a mesma cara, tem o mesmo jeitão. É uma questão de tempo: sai de um lugar e vai para o outro.
● Parece que a mudança do nome orfanato para abrigo também ajuda a confundir… É, isso acontece porque orfanato remetia a órfão e aí suscitava compaixão. Mas, independentemente do nome, precisamos olhar para todas essas crianças com o coração aberto e resolver esses problemas todos.
● Mas como resolvê-los? Não há fórmula pronta, mas sei que é necessária uma melhor estrutura do Judiciário para as varas da Infância e Juventude. Não émais possível que um juiz da Infância cuide também de júri, de execução penal. Não dá para ele só aplicar oECA(Estatuto da Criança e do Adolescente); por mais que seja fantástico, ele precisa pensarempolíticas públicas.Épreciso juízes, promotores e defensores para tratar especificamente disso. Eu pedi R$ 27 milhões ao governo do Estado porque eu queria fazer concurso para pedagogo, pediatra, aumentar o número de psicólogos, assistentes sociais, etc. Sabe quanto ganhei? R$ 10.
● Há carência de profissionais ligados a essa questão? Os que existem estão morrendo. Faz muito tempo que não chamamos psicólogos nem assistentes sociais. São poucos, com uma carga estúpida de trabalho e salários pequenos. E ai da psicóloga se ela fizer uma indicação errada e levar o juiz a dar uma criança a um casal de pervertidos. São poucos os juízes que, quando ocorre algum problema, explicam que a culpa é do sistema, que admitem: ‘Dei a decisão errada porque estou com 1 tonelada de trabalho e meus técnicos, com 2 toneladas.’ Lamentavelmente, estamos errando em assuntos absolutamente delicados.
● E também há juízes na área que não são adequados para o trabalho, não é? Na verdade, deveríamos escolher a dedo os juízes da infância e da juventude. Primeiro, saber se ele quer e depois ver se tem condições. É como um juiz que não gosta de choro e de bate-boca trabalhar em vara de família.
● Isso inclui, até mesmo, bom senso no caso da adoção por casais homoafetivos? A gente tem dado adoção para homossexuais solteiros há muito tempo. A novidade é a adoção pelo casal. E eles se mostram pais e mães seguros. Quem é contra argumenta que a criança vai se tornar homossexual. Não há nenhuma relação científica. Mas, e se ela se tornar, qual é o problema? Outros dizem que ela vai ser vítima de bullying. Mas ela só sofrerá se não nos aliarmos a eles para enfrentar situações de constrangimento. É o mesmo processo que aconteceu, nos anos 1950, com o desquite. Quando se dizia que uma mulher era desquitada, todos perdiam o ar. Hoje, uma mulher separada pode se tornar presidente da República.

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